terça-feira, 15 de março de 2011

DESFORRA (Conto)



                                                  
                                                         DESFORRA

                    Aproximaram-se, a esposa e a Inês. Uma de cada lado do caixão. Nele repousava Décio Martins, pequeno comerciante e pai de dois filhos, após
 ter sofrido um enfarte fulminante com apenas cinquenta anos.    
                    Poucas flores e somente duas velas, uma em cada pedestal de madeira, na cabeceira do morto. A luz fraca tremulava, prenunciando agonia. A viúva não conhecia aquela bela jovem que, desde a sua chegada, atraíra todos os olhares. O que estaria ela fazendo ali, envolta numa aura escura, densa, revelando um pesar que não fazia sentido? Por que velava um homem que não era o seu?
                    - Como foi que o Décio morreu tão de repente?- perguntou a Inês, interrompendo seus pensamentos.
                    A esposa calou-se, a outra não merecia resposta. Já era o bastante a angústia do não saber, as dúvidas para serem esclarecidas, o medo do que descobriria... E, ainda, com que intimidade ela lhe fazia essa pergunta? Pressentiu, então, a sujeira toda. Lembrou-se de ter lido, meses atrás, no caderno de notas do armazém do marido, um lembrete em vermelho. Era um pedido de entrega de algumas mercadorias para uma mulher, contendo seu no-
me e endereço. Estranhou que ali estavam sublinhados o telefone dela, o dia e
a hora.
                    Teve a confirmação. Tinha sido marcado um encontro entre eles. Seria o primeiro ou já haviam se encontrado outras vezes? Por que Décio faria a entrega e não um empregado seu? Seus ossos se crisparam e a tez enrijeceu. Era ela: Inês, a puta!
                    A viúva afastou-se do caixão para ninguém perceber o que sentia. Uma vontade louca de gritar e bater no morto e na vadia. Algo se insinuava no escuro de seu ser, aos poucos ia tomando forma.
                    Inês, como já havia bem marcado a sua presença, beijou a face do amante e foi embora.
                    O velório e o enterro transcorreram normalmente, a não ser pelos comentários sarcásticos, porém velados, de alguns dos presentes. À mulher traída nada mais importava. Queria chegar logo em casa e dormir.

                    O dia seguinte acordou sob um céu que parecia desabar. A viúva tomou seu café da manhã. Durante a tarde repetiu, mecanicamente, as tarefas de sempre.  A noite caiu. Botou as crianças na cama, agasalhando-as bem. Em seguida, subiu ao seu quarto. Vestiu uma calça de lã escura, uma japona azul-marinho e uma bota de salto baixo. Desceu à cozinha e demorou-se ali. Saiu de casa, levando uma garrafa de vinho tinto chileno que o marido escondera para tomar em ocasião especial.
                    Na rua, caminhava a passos largos. O vento e o frio intenso da noite cortavam a sua pele, mas ela suava. Ruminava exasperada tantas coisas... Ela, a esposa afetuosa e mãe dedicada, só recebera do marido migalhas de carinho e atenção, uns presentinhos ordinários ( ele sempre dizia que precisava economizar pra não faltar nada em casa pros meninos ), um sexo sem graça, morno, rápido, sem tesão. Parecia que queria se livrar logo daquela obrigação conjugal. Várias lágrimas rolaram pelo seu rosto. Agora lhe escorria um suor frio.
                     E, à amante? Dispensava cuidados especiais? Mimos, perfumes, adornos e até vestidos, quem sabe? Demorava-se nas carícias, beijos ardentes, as mãos firmes e carinhosas deslizando pelo corpo da cadela, num sexo cheio de orgasmo?
                     Apressou ainda mais o passo. Quase corria, ouvindo a voz do vento assobiar uma canção triste. Chegou ao destino, tinha o endereço da ordinária. Bateu à porta.
                     - A senhora, Dona Luísa?
                     - Sabes o meu nome. Como?
                     - No funeral do seu marido, eu ouvi...
                     - Décio falava em mim quando estava com você?
                     Fez-se um silêncio constrangedor. As duas olharam-se como dois galos num rinhadeiro. Feridas estavam pela perda do seu homem, porém decididas a levar adiante a conversa.
                     - Trouxe um vinho chileno de boa safra para bebermos o morto.  Acompanha-me, Inês?
                     - Vou buscar as taças.
                     
Oficina de Criação Literária Charles Kiefer
Curso: Quatro Encontros Sobre o Conto
Data: 07/02/2011
Autora: Beatriz Lago Rolim

Nenhum comentário:

Postar um comentário